Por Gustavo Barreto em 26/11/2010
Fonte: http://www.consciencia.net/
Nesta quinta-feira (25), uma notável apresentadora da GloboNews, em meio ao cenário de violência veiculado pela sua emissora, questiona um “especialista” em segurança pública:
– O morador que acaba tendo sua casa invadida, que eu entendo que não é cúmplice, não acaba se tornando cúmplice?
O entrevistado, visivelmente constrangido, responde:
– Claro que não, este cidadão é refém.
Entendo que um exemplo pode demonstrar muito ou ser usado de forma manipuladora. Mas argumento: este é um momento clássico, comum, em que meios de comunicação buscam criminalizar a pobreza. Eu não preciso argumentar que, caso fosse a casa da própria apresentadora a ser invadida, ela seria refém. Como trata-se de um morador da Vila Cruzeiro, região sem a mínima atenção do Estado em áreas sociais, trata-se de um “cúmplice”. Como jornalista, já ouvi muito essa premissa.
Ela continua, pouco depois, e declara em mais uma “pergunta”:
– Eles têm que entrar atirando, porque eles não podem entrar pedindo licença.
No Brasil, como (ainda) existe Estado de Direito, a mal informada apresentadora precisa saber que é uma obrigatoriedade constitucional “pedir licença”. É como fizeram, por exemplo, com o banqueiro Daniel Dantas. Pediram licença e gentilmente algemaram ele.
Outro fator que podemos apontar como curioso não se dá exatamente pelo que foi dito, e sim pelo não-dito, o não-visível: o número de moradores de favelas convidados para as mesas redondas na TV nesta semana foi zero. Convidados são os notáveis “especialistas”, quase todos moradores da Zona Sul, ou autoridades da Polícia ou do Estado (todos da área de segurança). É sintomático.
Existem algumas afirmações que são difíceis de serem contestadas. Por que muitos militantes pelos direitos humanos condenamos o que o Secretário de Segurança do Rio José Mariano Beltrame e o Governador Sergio Cabral insistem em chamar de “efeito colateral”? Por um simples motivo: Para quê a Polícia Militar e seus grupos especiais (como o BOPE) “reagem” a incursões dos traficantes “na mesma moeda”? Por que, para resumir o argumento repetido insistentemente sem qualquer reflexão, “os ataques precisavam de resposta” por parte do Estado? O que seria uma “resposta” a queimas de carros pela cidade? Por que simplesmente esquecer o trabalho de “inteligência” – que, lembremos, não é entrar atirando em favela – e partir para a velha política burra de confronto, pondo em risco centenas de pessoas inocentes?
Devemos pensar o tema de acordo com os argumentos declarados e os não-declarados:
Os declarados são o de que o Estado, “acuado” pelos ataques, tem um dever quase que “moral” de contra-atacar. É algo simbólico, porque a princípio bastaria reforçar o policiamento (com foi corretamente feito) e dar continuidade às investigações silenciosas da inteligência policial, que são muito mais efetivas. Por que sair correndo atrás de traficantes, com todo o tipo de recursos e de forma apressada?
Os não-declarados são parecidos com o primeiro: ao reagir imediatamente, a Polícia precisa voltar com alguma coisa concreta – daí surge a importância de manchetes como “Duas toneladas de maconha apreendidas” – para dar algum tipo de satisfação à sociedade, que também não apoia plenamente a tática do “mata-esfola”. Eles precisam “mostrar trabalho”, mesmo que o próprio Secretário admita que isso não resolve o problema estrutural.
Perguntemos, agora, às centenas de vítimas da violência policial como se sentem ao esperarem que o Estado faça seu trabalho de dar soluções sociais para problemas sociais e serem recebidos com balas, com tiros e ficarem no meio de um tiroteio. Como se sentem? Não sabemos, porque eles não participam das mesas redondas. Só os “especialistas”.
Apesar de o narcotráfico movimentar, segundo dados conservadores, mais de US$ 400 bilhões todo ano, os governantes do Rio de Janeiro ainda creem que o problema está na favela.
Apesar de o narcotráfico movimentar, segundo dados conservadores, mais de US$ 400 bilhões todo ano, os governantes do Rio de Janeiro ainda creem que o problema está na favela.
Creio que é fácil a resposta a esta pergunta. Todos os críticos cínicos nunca aceitariam, é evidente, que a polícia entrasse em suas regiões atirando. Não é preciso muito esforço “filosófico” para entender isso, não é mesmo? Se amanhã o BOPE – que credita oficialmente boa parte da culpa do narcotráfico aos usuários – decidisse entrar num condomínio da Barra da Tijuca atirando, pois ali moram centenas de usuários de maconha e outras drogas pesadas, a “comunidade local” permitiria? Então cá estamos, de novo, confrontados com hipócritas que não prezam pelo tão antigo mandamento da reciprocidade, um dos poucos conceitos comuns a todas as filosofias: Deseja para o teu próximo o que deseja para ti mesmo.
A “sede” por uma “resposta” é típico daqueles que são histéricos pelos motivos que já coloquei na primeira análise desde que teve início a atual crise (disponível aqui): aos se esquecerem completamente do problema, se veem diante de um novo monstro a cada crise e desejam, assim, uma solução rápida para que eles desapareçam. Quem é contra este tipo de dogma é “esquerdista”, “filósofo” etc, mesmo que tenha uma forte atuação social. Neste caso, não se trata de criticar a ação social em si, e sim de desqualificar um discurso indesejado.
O real e a percepção do real
Um dos mais claros indícios de que a mídia de fato vende bem seu “peixe da histeria coletiva” – o novo peixe urbano – é a impressão de que o número de arrastões têm aumentado, pelo fato de que o número de arrastões na Zona Sul aumentou. Quem mora ou já morou nas zonas Norte e Oeste da cidade do Rio de Janeiro sabe que esta é uma realidade cotidiana de alguns trechos e rodovias, como a Estrada Grajaú-Jacarepaguá, a Avenida Leopoldo Bulhões e tantas outras.
A diferença é que neste momento dois dos pontos focais foram a região da Lagoa e de Laranjeiras/Botafogo. Até hoje, veja só, as pessoas bem nascidas ainda ligam a palavra “arrastão” a “praias”, pela série de incidentes ocorridos há não muito tempo. Para uma outra parte da cidade, aquela que está longe das praias ‘pops’, a referência é outra.
O cenário seria outro se o jornalismo desonesto atualmente praticado no Brasil fosse substituído pelo jornalismo investigativo, que daria uma “resposta” mais inteligente. Digamos que eu sugerisse às grandes emissoras de TV que começassem uma investigação sobre quem são os financiadores do crime organizado, e que fizesse uma cobertura permanente sobre isso, com helicópteros sobrevoando a casa de empresários e políticos ligados ao narcotráfico e eventualmente descobertos. Os homens do andar de cima. Gente inclusive eleita no último pleito. São nomes que estão expostos em dezenas e dezenas de relatórios na própria Polícia, na Assembleia Legislativa, nos órgãos de controle interno. Façamos?
O curioso da reação à nossa perene e humilde tentativa de argumentar que o verdadeiro crime organizado não está nas favelas é típico de uma época destinada a viver entre eufemismos e sofismas: todos concordam com a afirmação, mas os mais conservadores continuam apoiando a entrada violenta da Polícia na favela, mesmo que isso custe a vida de inocentes. O nobre leitor trocaria um parente por duas toneladas de maconha? Trocaria uma filha, uma mãe?
No que diz respeito à influência da comunicação neste processo, a ideia generalizada de que a “culpa” pode ser ora (I) da Polícia ora (II) da mídia tem a ver com o modelo midiático no qual estamos acostumados, que sugere que há um receptor e um emissor, e a relação entre estes deve ser discutida nestes termos.
A “realidade” é uma composição complexa entre a realidade “das ruas” e as mensagens emitidas pela mídia, uma influenciando a outra. Isto não é algo difícil de entender, visto que estamos passando neste momento por um notável exemplo. Enquanto escrevo, muitas áreas da cidade estão esvaziadas por conta do toque de recolher espontâneo, mesmo que os incidentes não tenham afetado nem 10% do Rio de Janeiro (10% é na verdade um exagero meu), e mesmo assim quase que sem vítimas (a maioria dos incidentes são queimas de automóveis sem perdas humanas, e nenhum morador da Lagoa ou das Laranjeiras morreu).
Entender o cenário é, neste sentido, tão importante quanto agir. Cada pessoa – incluindo aí todos os “filósofos”, policiais, políticos etc – tem um nível de contribuição diferente, mas notavelmente há pessoas designadas (por meio de competências administrativas legais) para resolver estes problemas. Este é o jogo da democracia. Cobrar – como faço – é um exercício que se espera de todo e qualquer cidadão. Mas, como já disse, encarar críticas duras contra um determinando modelo excludente e fascista de governar (quando é pobre atira, quando é rico investiga) não é fácil. Daí as reações do tipo “Você é um filósofo”, “Você só sabe criticar” etc.
As alternativas a este modelo tem sido colocadas por distintos atores sociais e estão em parte sendo efetivadas, em parte não. E há problemas graves. Por pontos:
1. O objetivo de pacificar determinadas regiões e não outras é claríssimo: a violência evidente que existia na favela Santa Marta (por exemplo) e a proximidade desta com áreas turísticas fez com que o Governo do Estado visse o morro como estratégico para convencer autoridades internacionais de que o Rio de Janeiro era capaz de sediar grandes eventos. Isso não é dito por mim, e sim pelo próprio Secretário de Segurança, que declarou que o Santa Marta foi a favela-padrão exibida para membros do COI, por exemplo, para ganhar o direito de sediar as Olimpíadas.
2. O modelo das UPPs, como falei, é um modelo de polícia comunitária, que o Governo do Estado tem toda a capacidade de estudar (por meio de institutos de pesquisa e parceria com universidades), para tentar integrá-lo ao conjunto de ações. É disso que se trata: a polícia deve ser comunitária, e não existir uma “polícia comunitária” versus a polícia-polícia. Esta é a realidade atual: duas polícias coexistem e agem de modo esquizofrênico.
3. A polícia comunitária possui três características básicas: (I) A aproximação com a sociedade; (II) A valorização do policial (salário, preparação, atendimento de reivindicações de classe); e (III) Controle social.
No primeiro tópico, o avanço é mínimo, restrito às 13 UPPs (e mesmo assim há críticas em algumas delas pelo baixo grau de participação). No segundo, nem se fala: salários baixíssimos, estruturas de trabalho ruins (como foi exposto no artigo) e treinamento insuficiente para a maior parte das tropas (nesse caso seria necessário ouvir líderes trabalhistas da classe, o que é raro, perceba). No terceiro item, estamos falando da Ouvidoria da PM, cuja qualidade é sofrível (vide reclamações das vítimas da violência policial sobre instalação dos inquéritos policiais, os IPMs).
4. Por último, por ser o mais importante: a favela é um problema social. A falta de estrutura na educação e na saúde dentro da favela, unido ao desrespeito aos pisos salariais e poucos incentivos de formação a profissionais, acaba por reforçar o papel dos criminosos, que se inserem justamente onde não há Estado.
Novamente, todos concordam com essa máxima, mas na hora de exigir escolas públicas de qualidade nas favelas, a bem educada “comunidade” do asfalto da Zona Sul deixa a histeria de lado e continua a beber seus vinhos importados e frequentar seus teatros e shows internacionais.
De modo que, pelo que foi exposto aqui, de fato não creio em melhorias substanciais, a não ser que estas questões comecem a ser tomadas como prioridade pela sociedade civil organizada e contempladas seriamente pelo Estado. Teorizar excessivamente sobre o caso seria pôr na conta da “desigualdade social” o que está acontecendo no Rio de Janeiro. Isso fazem os governantes, justamente aqueles que deveriam, por competência administrativa legal, tentar reverter esse quadro.
Mas entendo a angústia generalizada e, por isso, abrimos o diálogo neste espaço – já que, perceba, nas emissoras de TV não dá para dialogar, apenas receber a informação.
Como observou Antonio Gramsci, o modelo hegemônico é assim mesmo: opressão e consenso. A opressão o Estado cumpre bem, atualmente – tanto no descumprimento das obrigações sociais quanto na utilização da força policial contra os pobres. O consenso a mídia tenta criar (nem sempre consegue). Em tempos de Internet, podemos ampliar (um pouco) o debate e sugerir abertamente ações diretas, como o fiz humildemente aqui.
Fonte: http://www.consciencia.net/
Um comentário:
muito bem colocado!
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