A revolução egípcia abre um oceano de possibilidades no mundo árabe


15 de fevereiro de 2011, da Vila Setembrina Bruno Lima Rocha, das Alagoas, Rafael Cavalcanti

Quando um jovem tunisiano se auto-imolou como prova extrema de protesto contra a ditadura de Ben-Ali, ascendera uma centelha que uma vez midiatizada, pôs fogo em toda a região. O que começara na Tunísia em 14 de janeiro foi um ato extremo de dizer, Basta! Na ponta da estrutura de poder do país, um policial corrupto e abusando de autoridade opera no orgulho de um homem de pouca idade, exercendo uma sub-função de feirante na busca da sobrevivência, não podendo viver de seus anos de estudo e menos ainda do entorno de idéias que nas instituições educacionais o cercavam. Este jovem era um de milhões naquele país, e um entre milhares de milhões no mundo árabe.

Enquanto são escritas estas palavras, o poder ainda se disputa no Centro do Cairo, em Argel, no Iêmen, à moda bíblica, a base de pedradas. O Egito vitorioso de hoje e a Tunísia ainda a arder nas ruas são a prova viva de que a capacidade de mobilização é um fator decisivo nos rumos políticos de um país. Ao contrário do que costuma pregar o senso comum, a calmaria na sociedade equivale à perpetuação de esferas mínimas de participação, exagerando a presença de pequenos grupos de interesse e frações de classe dominante. 

É essencial notar o fator das margens de manobra de cada operador político em cenários complexos e de realismo político como o do Magreb e Norte da África, além do Oriente Médio e a Península Arábica. O Egito é o fiel da balança, conforme estes mesmos analistas já escreveram antes das pedras voarem. Também havíamos avaliado – no ar – que se houvesse a queda de Mubarak, seria para além dos pactos combinados seguindo à moda do Pacto de Moncloa espanhol. O impasse político que resultara na derrubada do odiado herdeiro do também traidor da causa árabe Anwar El-Sadat (eliminado fisicamente em 1981 por mudjahiddins da Irmandade Muçulmana) inflamaria o Marrocos, ainda mais a Tunísia, o Iêmen, a Jordânia e em menor escala a Síria dos Assad alauítas. A luta argelina seria, e continua sendo, uma incógnita na região. Na esteira do ódio popular alimentado também pelo banimento de organizações integristas, está a Argélia da Nomenklatura dos veteranos da FLN, arrependidos da herança política dos anos de Ben Bella e cia. Mas, como também prevíamos (em comentários radiofônicos), os fatores concomitantes do poder no Egito não escorregariam das mãos da mesma forma como fora em Túnis. Os mais de 300 assassinados e as batalhas da Praça Tahrir dão carne viva para a hipótese comprovada. 

Nas redações do Ocidente, a gritaria também chegara “descobrindo” que as forças de segurança e repressão dedicadas a seqüestrar suspeitos – sem nenhum processamento legal – também se dedicam a reprimir jornalistas e comunicadores. Neste bojo, entraram os ativistas da web egípcios, um executivo do Google e dezenas de homens e mulheres de mídia, incluindo profissionais brasileiros. O “curioso” é a ausência das analogias comparativas – técnicas básicas de estudos de profundidade e reportagens de mergulho – quando ninguém de “peso” nas indústrias de comunicação do Brasil toma a coragem de dizer a verdade. É regra de qualquer análise institucional. A mesma força repressora e operadora dos desígnios do Executivo é também a espinha dorsal do crime, da violência entre as maiorias e no novo regime será parte de entulho autoritário a se reciclar, migrando da repressão política ao crime organizado por dentro do aparelho de Estado. Porque a polícia e a inteligência egípcias, fiéis a Mubarak, leais ao Departamento de Estado, às agências de espionagem dos EUA e de Israel, haveriam de ter comportamento distinto diante dos repórteres estrangeiros?! 

Foram estas mesmas forças e com semelhante mentalidade de desprezo da inteligência popular que levara o Executivo a buscar uma saída desesperada. Talvez no intuito de causar comoção pelo caso, gerando insegurança na espinha dorsal da oficialidade em condição de comando de tropas e do generalato do conselho militar, Mubarak realiza uma manobra clássica ao longo de sua queda. O emprego de servidores públicos, policiais e funcionários dos órgãos de segurança, além de trabalhadores avulsos - e isolados socialmente - elevando sobremaneira os níveis de confronto, dando a entender para o exterior que haveria o risco concreto de uma guerra civil e uma total desorganização social. O efeito deu-se ao contrário, acirrando os ânimos de quem estava nas ruas e aumentando a presença de manifestantes e redes de apoiadores. 

Embora com intensidades distintas, há elementos comuns entre as rebeliões populares tunisianas e egípcias, a começar na comparação das vitórias parciais – por conseguirem derrubar o chefe do Executivo, banir parcialmente o bando de governo e agendar eleições sem proibição de uma série de partidos políticos. Ambos os países onde se obteve conquista parcial contra ditaduras corruptas, repressivas e pró-ocidentais são repúblicas – ao menos na denominação formal – embora com muito pouca independência e autonomia entre os poderes. Não deixa de ser um ponto positivo – a condição republicana - considerando a questão-chave de aumentar as margens de manobra para derrubar a tirania. Tal estatuto republicano não se encontra nas monarquias marroquina, saudita e jordaniana. É de se supor a menor circulação de idéias de tipo igualitárias, ou de “nacionalidade” (no sentido do Estado-nação como instituição que atende a todos) nas monarquias despóticas com base familiar e tribal. 

Como ponto pouco ou nada positivo - chegando a pôr em dúvida deste mesmo estatuto republicano – está à presença das Forças Armadas – em especial de suas forças terrestres – como Poder de fiador da ordem e da transição, de modo a não fragmentar as garantias de última instância de um Estado. Houve a preservação destas forças na Tunísia e o mesmo ocorre no Egito. O orgulho “nacional” de uma força que tivera como resultado ápice o empate de 1973 com Israel, mantido com recurso do Império e que também se dedica a reprimir e controlar a fronteira com Gaza. São 460 mil profissionais militares, afiançados nas garantias da transição e da integridade institucional – daquilo que existe como arremedo de Estado – em bases laicas. 

Do outro lado da história a levantar hipóteses de arranjos complexos e saídas não laicas está à presença de islamitas – jihadistas ou não – e especificamente no caso do Egito, a muito respeitável e agora “reciclada” Irmandade Muçulmana. Há combustível de retro-alimentação para além dos vizinhos do integrismo suni do Hamas. Abundam veteranos afeganis, voluntários integristas que foram lutar no Afeganistão ocupado pela União Soviética, fruto da coordenação da rede de Bin Laden com as estruturas capilares da fé e com a triangulação promovida pela CIA. É sabido, público e notório tanto o efeito bumerangue que estes veteranos tiveram na montagem destas redes integristas no norte da África (com maior ênfase na década de ’90 do século passado, quando forças políticas integristas ganhariam no voto eleições egípcias e argelinas) – isto sem falar no próprio Paquistão, à beira de uma guerra civil – como o ódio visceral dos alto-comandos de inteligência e repressão leais aos seus governos despóticos e autoritários – aliados dos EUA, como Jordânia e o próprio Egito – para com estas mesmas redes e seus respectivos veteranos afeganis. 

Especificamente no caso egípcio, nota-se (mesmo à distância) que a Irmandade Muçulmana talvez seja hoje a única força por fora do aparelho de Estado (ao menos, fora dos centros decisórios do governo nacional) com capilaridade e estrutura permanente em toda a sociedade, fruto de presença e penetração entre as massas mobilizadas. Outras forças de imediato seriam alguma dissidência de dentro do próprio (ex) governo Mubarak e, por suposto, o Conselho Militar do exército que dera suporte a Nasser e desde 1978 tem seu orçamento parcial ou totalmente coberto pelo Pentágono. 


Algumas gotas no oceano de possibilidades 

De um oceano de possibilidades, destacamos três projeções até o advento da promessa de eleições em setembro próximo. É inegável, o exército (o mesmo citado acima) ainda opera como fiel da balança interna. A gangorra pode pendular para a proposta que atravessa toda a região, que está além do mundo árabe, retornando a proposta da Umma pan-islâmica, longe do pan-arabismo nacionalista (tipo terceiromundismo pouco ou nada alinhado) e com dois pólos concorrentes. Um sunita, por dentro da rede (Al Qaeda) e outro xiita, pólo este vindo do Estado líder, o Irã. Esta mesma ausência de referência árabe se nota na ausência justamente de Estado líder e árabe, como em seu tempo já foram tanto Egito como Argélia. O tom discursivo e a ajuda material concreta provem de um Estado com regime quase teocrático (o Irã), não-árabe, mas com uma política externa mais azeitada no tom do discurso antiimperialista e anti-ocidental. No caso da Palestina, o apoio dado explicitamente ao governo de Gaza do Hamas dá provas da visão da política externa iraniana para além do sectarismo religioso, operando como um agente com poderes de veto em toda a área. 

As argumentações de análise de conjuntura embasadas em trajetórias histórico-estruturais de agentes e entorno da política egípcia nos levam a um cálculo bastante simples. Para os interesses do Império na região, perder o Egito é tão complicado – ou mais – do que perder a Arábia Saudita. E, para perder o país de Nasser, este tem de deixar de ser o Estado que se alinhara com Israel e EUA após os acordos de Camp David. Mubarak deve os seus trintas anos à frente do maior dos países árabes a este alinhamento que motivara a ação de eliminação física do sucessor de Gamal AbdEl, Anwar ElSadat. Considerando tal opção estar fora das possibilidades (o que seria o melhor dos mundos para o Império), o “menos pior” dos mundos seria uma proposta modernizadora e institucionalista, advinda das forças armadas e de legendas novas, surgidas da mobilização massiva e alimentada pelas redes sociais. Já os piores dos mundos (para o Império) seriam eleições ganhas pelos integristas (mesmo que ponderados, como é o caso da quase centenária Irmandade Muçulmana) ou uma aliança de tipo laica e anti-ocidental. 

A unidade dos povos árabes depende hoje necessariamente da derrubada de governos autoritários, monárquicos-autocráticos e essencialmente repressor e corrupto. Havendo a composição de novas forças – de tipo secular – que se acercariam da esquerda palestina atual (diminuta, mas com coerência interna necessária para assegurar condição de existência) estas necessariamente passariam pelo acúmulo de experiências nas vitórias e embates nas ruas de Túnis e Cairo. Isto no curto prazo não brota do concreto, pois organizar uma força política pan-árabe é desafio superior a convocar gente irada através de redes sociais da internet. 

No ocaso da ditadura pró-ocidente e anti-árabe tiveram força fundamental as estrutura sindicais e movimentos de tipo juventude. No caso egípcio, os sindicatos vinculados ao serviço público e o Movimento Juvenil 06 de abril tiveram heróica presença e uma boa capacidade de convocatória. Em geral, no vazio político da representação formal, destas forças pode surgir um novo espaço de estruturas organizativas de tipo secular e com arraigo – pois de lá vieram – nos episódios hoje já épicos da Batalha da Praça Tahrir. Qualquer expectativa de uma renovação política, no sentido de ratificar direitos e radicalizar a democracia de massas e com intervenção direta da população vem destes espaços de aglutinação e militância. 

Este artigo foi originalmente publicado no portal do Instituto Humanitas Unisinos (IHU)

 

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