Copa e Olimpíadas: o que realmente está em jogo?

Fonte:  http://carosamigos.terra.com.br/
A preparação das cidades brasileiras para os megaeventos esportivos já apresenta inúmeros problemas. Entre eles, obras aprovadas sem licitação e ameaças de despejos de milhares de famílias.
Por Débora Prado
A escolha do Brasil como sede da Copa do Mundo em 2014 e dos Jogos Olímpicos em 2016 foi amplamente comemorada. Não poderia ser diferente num País em que o orgulho nacional e a paixão pelo esporte são traços culturais marcantes. O que as comemorações ocultaram, entretanto, são os muitos problemas relacionados à forma como é feita a preparação para estes megaeventos esportivos: são obras aprovadas sem licitação, ameaças de despejos de milhares de famílias, transferência de grande quantia de recursos públicos para poucos grupos privados, intervenções realizadas na cidade que ferem as legislações de planejamento urbano e proteção ambiental, extrema falta de transparência e nenhuma participação do conjunto da população nas decisões que já estão sendo tomadas em nome dos jogos.

Alguns atores do governo, da iniciativa privada e das entidades ligadas à Copa e Olimpíadas têm decidido como será a preparação das cidades e alocação dos recursos para os  megaeventos, tendendo a reforçar a concentração de renda e poder já existentes. Enquanto isso, na grande mídia, há pouco ou nenhum espaço para importantes questionamentos: o que  realmente representa esta preparação? Como o capital atraído para sua realização é distribuído? Como são planejadas as reestruturações urbanas? Quem ganha e quem perde com estes processos? A Caros Amigos conversou com moradores das cidades sedes dos  eventos, professores, pesquisadores, intelectuais, parlamentares e integrantes dos movimentos sociais para tentar responder a estas perguntas e mostrar o ‘lado B’ da Copa e das Olimpíadas, ignorado diariamente na campanha pelo orgulho nacional.
“Faz parte da nossa cultura gostar do local onde nascemos e vivemos, as pessoas são apegadas as suas cidades e querem que haja eventos nela. Só que esse sentimento saudável se transforma numa armadilha contra a própria população. É preciso desfazer a cortina de fumaça e mostrar que sim, gostamos de jogos, queremos os eventos, mas sem autoritarismo, sem corrupção e sem comprometer o orçamento público pelos próximos 20 anos”, explica Carlos Vainer, professor do IPPUR/UFRJ (Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Os problemas surgem quando as transformações legitimadas pela Copa e Olimpíadas abrem caminho para práticas como o desrespeito a direitos fundamentais e o mau uso dos recursos públicos. A professora da FAU-USP e relatora da ONU para o direito à moradia adequada, Raquel Rolnik, explica que os megaeventos são uma estratégia que as cidades têm utilizado para promover transformações urbanísticas, com uma dupla serventia: “de um lado, a mobilização que ele provoca em nível nacional e internacional acelera a possibilidade de investimentos e transformações, ao mesmo tempo em que, na competição entre as cidades pela atração de investimentos internacionais, o megaevento traz visibilidade. E, ainda, como se trata de megaeventos esportivos, também tem um apego emocional, que justifica um verdadeiro estado de exceção, uma situação em que as regras normais de como as coisas devem ser feitas não precisam ser cumpridas”.
Ela relata que, com o estado de exceção gerado, tanto o Rio de Janeiro, quanto outras cidades brasileiras que receberão jogos do Mundial de Futebol, estão implementando intervenções que em situações corriqueiras ou demorariam ou teriam uma série de entraves do ponto de vista jurídico-administrativo, ou seriam alvo de resistência por parte da população. “Já estão sendo aprovadas várias excepcionalidades para a Copa do Mundo em relação à lei de licitações, isenção de impostos, a não necessidade de algumas salvaguardas que normalmente são exigidas, que vão desde alterações de Planos Diretores (lei municipal que estabelece diretrizes para a ocupação da cidade) que não passam pelos processos normais. Elas já estão sendo votadas pelas Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas e pelo Congresso Nacional – em todas as esferas, isso já está acontecendo no Brasil”, relata a professora.
De fato, somente na noite do dia 24 de novembro, o Senado Federal aprovou duas medidas provisórias destinadas especificamente à realização da Copa e Olimpíadas. Uma delas ampliou o limite de endividamento dos municípios em operações de crédito destinadas ao financiamento de infraestrutura para os eventos. Além disso, houve isenção fiscal para a importação de materiais que serão usados nos jogos. As duas MPs foram aprovadas em tempo recorde – em uma semana com apenas duas sessões de poucos minutos na Câmara e Senado.
Com o estado de exceção em curso, grande parte das intervenções feitas nas cidades não estão seguindo parâmetros estabelecidos em documentos internacionais e nacionais, como o “Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais”, a Constituição Federal de 1988, o Estatuto das Cidades de 2001 e os Planos Diretores dos municípios. “Na verdade, nenhuma dessas intervenções faz parte de um processo de planejamento urbano, muito menos de um processo de planejamento participativo, que é aquilo que prega o Estatuto das Cidades”, explica Rolnik.
Como relatora da ONU para o direito à moradia adequada, a professora conta que já tem recebido denúncias de despejos e ameaças de despejos, principalmente de comunidades de baixa renda e de assentamentos precários, em várias cidades do Brasil, em função de obras de infraestruturaou ligadas aos equipamentos da Copa do Mundo. “Tudo aquilo que o Brasil se comprometeu como signatário do Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais - que diz claramente quais são os procedimentos adequados que devem ser adotados e seguidos no caso de ser ecessária uma remoção - não está sendo aplicado. Às pessoas que estão sendo removidas não é dada a chance sequer de ter informação sobre o projeto, sobre qual vai ser a alternativa oferecida a ela para o reassentamento. Também não é dada a chance de se estudar alternativas que evitem ou minimizem as remoções”.
Isto tudo com um agravante: o financiamento das intervenções é majoritariamente público. “São recursos financeiros, patrimoniais (terras), espaços públicos, que são transferidos sob regras de exceção para grupos privados, sem debate público, em negociações nas quais o povo não é consultado. Há uma canalização de recursos públicos para interesses privados, para as construtoras, as empreiteiras, as empresas de telecomunicações e marketing. E as empresas envolvidas são aquelas mesmas que estão nas listas entre as maiores contribuintes das candidaturas, as que fazem doações para todas as campanhas políticas, como a Odebrecht, a Camargo Corrêa, a Votorantim, o grande agronegócio. E, evidentemente, esses recursos são pagos por todas as outras rubricas, pelo transporte popular que não está sendo feito, pelo saneamento que não é feito e por aí vai”, destaca Vainer.

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